Análises em animais e amostras de sangue revelam que vírus chikungunya induz à proteção cruzada parcial contra o vírus mayaro, encontrado em áreas silvestres do Brasil
A infecção pelo vírus chikungunya, encontrado em praticamente todas as regiões urbanas brasileiras, induz a uma resposta imunológica capaz de reduzir parcialmente as consequências clínicas da infecção pelo vírus mayaro – comum em localidades próximas a áreas silvestres no Brasil –, como febre e dores nas articulações. A descoberta da proteção cruzada entre os dois vírus, que, apesar de terem estruturas semelhantes, são transmitidos por espécies diferentes de mosquitos, aconteceu em pesquisa da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP. Apesar de os testes realizados em camundongos e em amostras de sangue de pessoas infectadas indicarem a proteção cruzada, o estudo ressalta a necessidade de novos estudos para avaliar o quanto esse resultado poderá contribuir para o controle da disseminação do mayaro e como proteção contra os efeitos da infecção pelo vírus.
Aedes – Foto: Cedida pelo pesquisador
Durante uma infecção, seja ela viral ou não, o organismo é sensibilizado a desenvolver uma “memória imunológica”. “Esta memória é capaz de responder mais rapidamente e com maior eficiência durante uma reinfecção. Entretanto, vírus que apresentam proximidades evolutivas podem apresentar também estruturas semelhantes, que são capazes de ativar mecanismos imunológicos induzidos previamente por outro vírus”, explica ao Jornal da USP o pesquisador Marcílio Jorge Fumagalli, da FMRP, responsável pelo trabalho. “Neste caso, a resposta imunológica pode ou não desencadear mecanismos protetores, mesmo que a pessoa nunca tenha sido exposta a este novo vírus. A proteção cruzada, portanto, trata-se da reativação do sistema imunológico por patógenos ou antígenos diferentes dos que o originalmente o produziram, sendo capaz de impedir ou reduzir o desenvolvimento de uma outra doença.”
Segundo o professor Luiz Tadeu Moraes Figueiredo, da FMRP, autor sênior do trabalho, os vírus chikungunya e mayaro são endêmicos no Brasil e causam doença febril com acometimento articular, como dor e inchaço que, em alguns casos, podem durar meses ou anos. “O chikungunya é um problema de saúde pública mundial, sendo responsável por causar milhões de casos e epidemias, principalmente em regiões de clima tropical”, aponta. “ Sua transmissão ocorre em ambientes urbanos através de mosquitos do gênero Aedes.”
Por outro lado, o mayaro tem sua distribuição limitada a regiões da América Latina. Sua transmissão ocorre através de um mosquito diferente, do gênero Haemagogus, que vive em regiões florestais. “Ele é transmitido principalmente no ambiente silvestre entre mosquitos e animais vertebrados, como, por exemplo, macacos e seres humanos. Também é endêmico no Brasil e responsável por surtos esporádicos em regiões de contato próximo a florestas”, descreve o pesquisador. “Acredita-se que os seres humanos são infectados acidentalmente pelo mayaro, entretanto, sua disseminação tem causado grande preocupação em órgãos públicos e na comunidade científica. Assim como o chikungunya, ele causa doença febril aguda com acometimento inflamatório das articulações (dores), que são os principais sintomas, e em alguns casos essa inflamação pode evoluir para doença crônica e perdurar por meses ou anos. Ambos os vírus não possuem vacinas ou tratamentos específicos disponíveis.”
“O diagnóstico específico do mayaro é feito por meio de testes moleculares, entretanto o vírus só é detectado na fase aguda da doença, de cinco a sete dias após a infecção, e torna-se mais complicado fazer o diagnóstico diferencial, pois não temos testes sorológicos específicos para diferenciar entre as infecções pelos dois vírus”, relata Fumagalli. “O mayaro apresenta elevada expectativa de emergência e transmissão para outras regiões. Considerando que o vírus chikungunya circula de maneira mais ampla e comum no País, decidimos estudar quais seriam os possíveis impactos da infecção secundária pelo mayaro, considerando que o mesmo pode ainda se alastrar e circular em regiões onde já circula o chikungunya.”
PROTEÇÃO CRUZADA
Durante a pesquisa, foram realizadas infecções experimentais em camundongos e também utilizadas amostras sanguíneas de pessoas que foram infectadas por chikungunya ou mayaro. “Nos camundongos, realizamos a infecção primária pelo chikungunya e, após um mês, realizamos a infecção secundária pelo mayaro, que normalmente desenvolve doença inflamatória aguda local. Neste contexto, avaliamos como a infecção primária foi capaz de alterar o perfil da doença secundária durante a infecção pelo mayaro”, relata Fumagalli. “Com as amostras de pessoas infectadas, avaliamos in vitro [em laboratório] a reatividade e a proteção cruzada mediada por seus anticorpos contra ambos os vírus.”
Partículas virais dos vírus chikungunya (à esquerda) e mayaro; apesar de apresentarem estruturas semelhantes e os mesmos sintomas (febre e dores nas articulações), os dois vírus são transmitidos por espécies diferentes de mosquitos que habitam o território brasileiro – Imagem: cedida pelo pesquisador
“Em camundongos, observamos em ensaios in vitro que apenas a infecção primária pelo chikungunya não é capaz de induzir elevados níveis de anticorpos com propriedades protetoras cruzadas para mayaro. Entretanto, após ocorrer a infecção secundária, os níveis de anticorpos protetores aumentam rapidamente, e o quadro da doença é reduzido de maneira muito significativa”, ressalta o pesquisador. “Ao investigar melhor, observamos também uma ampla redução no recrutamento de células de defesa e de mediadores inflamatórios, assim como uma grande redução na carga viral, melhora na patologia de tecidos infectados e no quadro clínico dos animais. Isso sugere que a proteção cruzada em animais não depende só da produção de anticorpos, mas de mecanismos imunológicos um pouco mais complexos.”
Com as amostras humanas, a pesquisa observou que pessoas infectadas por chikungunya ou mayaro produzem grande quantidade de anticorpos protetores contra o respectivo vírus causador da infecção. “Entretanto, a exemplo do que observamos em camundongos, os anticorpos destes pacientes apresentam níveis de proteção cruzada muito baixos”, destaca Fumagalli. “Tendo em vista os resultados observados em camundongos, acreditamos que situação muito similar deva ocorrer nos humanos, que potencialmente devem responder de maneira cruzada rapidamente após a infecção, elevando os níveis de anticorpos protetores, que, por vez, desenvolvem papel importante na redução da doença secundária.”
De acordo com o pesquisador, a inédita proteção cruzada identificada no estudo não permite inferir sobre possíveis tratamentos. “O resultado da pesquisa sugere que pessoas infectadas pelo vírus chikungunya em algum momento de sua vida, potencialmente, podem estar parcialmente protegidas da infecção secundária pelo vírus mayaro, caso isso ocorra futuramente”, observa. “Neste caso, porém, novas perguntas surgem, tais como: o quão profundo será o impacto clínico desta proteção cruzada durante uma reinfecção com um vírus diferente?; esta proteção cruzada seria suficiente para limitar a emergência do vírus mayaro em regiões onde circulam os vírus chikungunya?; quais as consequências epidemiológicas na dinâmica de transmissão e disseminação destes vírus?”, questiona. “Esperamos que futuros estudos epidemiológicos e clínicos ajudem a resolver estas questões.”
O estudo contou com a participação de nove pesquisadores, oito deles da FMRP, que conduziram os experimentos em camundongos, realizaram ensaios in vitro e desenvolveram o planejamento do projeto. A pesquisa teve também o auxílio de um professor da Universidade de Campinas (Unicamp), que conduziu análises patológicas. Os resultados do trabalho são apresentados no artigo Chikungunya virus exposure partially cross-protects against Mayaro virus infection in mice, publicado no Journal of Virology em 22 de setembro.
Notícia retirada do site Jornal da USP