Realizada por pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, pesquisa foi publicada na revista The Lancet
Profissionais de saúde em atendimento no Caism: mulheres que participaram do estudo simplesmente deixaram de desenvolver o câncer. Foto: Antonio Scarpinetti
O câncer de colo de útero é um dos poucos que pode ser erradicado, pois decorre de uma infecção persistente pelo vírus HPV, contra o qual existe vacina. O vírus também é detectável em exame preventivo antes que cause o tumor. No entanto, a baixa adesão ao exame periódico e à vacina faz com que uma brasileira morra pela doença a cada 90 minutos. São 6,5 mil mortes e 16,5 mil novos casos ao ano, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA). Trata-se do terceiro tipo de câncer mais comum entre mulheres, sendo o primeiro na região Norte do país, e o quarto mais letal. A Organização Mundial da Saúde (OMS), que estabeleceu metas para a erradicação da doença, aponta que, em 2020, mais de 500 mil mulheres foram diagnosticadas e quase 342 mil morreram, a maioria em países pobres.
Para transformar essa realidade e gerar evidência científica robusta, com dados que possam servir de base para políticas públicas mais eficientes, o Centro de Atenção Integral a Saúde da Mulher (Caism) da Unicamp, a Prefeitura Municipal de Indaiatuba (SP) e a Roche Diagnóstica uniram forças em um estudo para rastreamento de câncer de colo de útero. Os primeiros resultados foram publicados em 1/11 pela revista científica The Lancet Regional Health - Americas. A partir deles, será possível preencher duas grandes lacunas dos programas existentes, que são onerosos e de baixíssimo impacto na mortalidade por câncer de colo de útero, segundo os pesquisadores.
A primeira delas é a falta de programas organizados de rastreamento, que leva à baixa adesão das mulheres ao exame periódico. A outra é a necessidade de substituir a citologia convencional -- o exame de Papanicolau -- por um teste de HPV baseado em DNA. Esse teste detecta, de forma automatizada, as cepas do vírus que causam o câncer, sem espaço para dúvidas na interpretação dos resultados. Em comparação à sua elevada sensibilidade, a citologia tem performance mediana, podendo deixar escapar casos de lesões precursoras e até o câncer já estabelecido. O mesmo estudo demonstra o custo-efetividade do teste de HPV.
Tais lacunas são hoje sinônimo de diagnósticos tardios, comprometimento da qualidade de vida das mulheres, mortes e desperdício de recursos do sistema de saúde. Inconformados com esse cenário, pesquisadores da Unicamp propuseram um programa de prevenção alinhado com os mais modernos existentes. A Prefeitura de Indaiatuba viabilizou a participação das mulheres da cidade com idades entre 25 e 64 anos, usuárias do SUS, por meio de campanhas informativas, busca ativa, estrutura para a realização dos testes e acompanhamento. A Roche disponibilizou testes DNA-HPV, com um total de 16.384 já realizados. O Caism da Unicamp conduziu todo o protocolo científico do estudo e assessorou a condução do programa municipal.
RESULTADOS
Após 30 meses de atividade do Programa de Rastreamento do Câncer de Colo de Útero com teste de DNA-HPV (outubro de 2017 a março de 2020), mais de 80% da população-alvo projetada foi coberta. A conformidade dos testes de HPV realizados com a idade foi de 99,25%, em comparação com 78% obtida no programa com citologia (método tradicional utilizado nos 30 meses prévios, de outubro de 2014 e março de 2017, que envolveu 20.284 mulheres). No âmbito do programa, 86,8% de testes tiveram resultado negativo e 6,3% tiveram indicação de colposcopia. 78% das colposcopias foram realizadas. Foram detectadas 21 mulheres com câncer de colo de útero, com idade média de 39,6 anos, com 67% dos casos em estágio inicial. Para uma comparação quanto à eficiência do novo método de diagnóstico, no rastreamento com Papanicolau foram detectados apenas 12 casos de câncer, com idade média bem superior (de 49,3 anos), e apenas um caso em estágio inicial.
A detecção do câncer nas mulheres que fizeram o teste de DNA-HPV foi antecipada em 10 anos, comparando-se com o método tradicional, o que explica o maior índice de casos iniciais. Além disso, muitas das mulheres que participaram do estudo simplesmente deixaram de desenvolver o câncer. Isso porque, se o teste dava positivo para HPV16 ou HPV18, responsáveis por 70% dos casos de câncer de colo de útero, a mulher era encaminhada para um outro exame, a colposcopia, a partir do qual era possível realizar um tratamento curativo e preventivo da lesão inicial, pré-câncer. Aquelas que não tinham lesão pré-cancerosa, faziam o acompanhamento com um intervalo menor para detectá-las no início, caso surgissem.
Luiz Carlos Zeferino, diretor da FCM e um dos pesquisadores principais do projeto: A detecção do câncer nas mulheres que fizeram o teste de DNA-HPV foi antecipada em 10 anos, comparando-se com o método tradicional. Foto: Antonio Scarpinetti
Quando o teste era negativo para HPV16 ou HPV18, mas positivo para 12 outros tipos de HPVs de alto risco, era realizado o teste com citologia em meio líquido. Se alterado, a paciente era encaminhada para colposcopia e passava a ser acompanhada mais de perto.
Outra vantagem do método é que, de acordo com as diretrizes internacionais, caso o teste seja negativo para todos os tipos de HPV, a mulher só precisará repeti-lo após cinco anos - diferentemente do programa com citologia tradicional, em que, após dois resultados normais consecutivos, o exame precisa ser repetido a cada três anos. Assim, a adoção de um teste mais preciso permite otimizar os recursos do sistema de saúde, como já demonstrado em outro estudo realizado no mesmo programa utilizando informações de vida real e no âmbito do SUS.
Publicado em maio de 2021 na Plos One, o estudo da avaliação econômica do teste de genotipagem de HPV mostrou que a tecnologia é capaz de gerar, além de melhores resultados clínicos, redução de custos, se comparado ao Papanicolau. Inovações em saúde costumam vir associadas a aumento nos custos, mas os pesquisadores provaram que esse caso é diferente. A mudança para uma tecnologia mais avançada acaba resultando em uma redução de U$$37,87 por ano de vida ganho com qualidade de vida.
LIÇÕES APRENDIDAS
O dr. Júlio Cesar Teixeira, pesquisador principal do estudo e diretor da Oncologia do Hospital da Mulher (Caism) da Unicamp, destaca o pioneirismo da pesquisa, por envolver toda a população feminina de uma cidade, sem seleção e por meio do SUS, e por gerar dados comparativos da vida real. “É muito diferente do que a ciência já tinha realizado, em ambientes de estudo mais controlados ou em experiências pontuais, principalmente em países de renda mais alta. Com esses resultados, publicados no The Lancet Regional Health - Americas, mostramos que, com estratégias e ferramentas diagnósticas corretas, é possível salvar milhares de vidas no Brasil e no mundo e de fato erradicar o câncer de colo de útero”, afirma.
UM ESTUDO CLÍNICO QUE VIROU POLÍTICA PÚBLICA
Em 2017, a Prefeitura Municipal de Indaiatuba criou uma Portaria7 para instituir, no Sistema Único de Saúde (SUS), o rastreamento por teste de DNA-HPV, substituindo o Papanicolau. Paralelamente, promoveu condições para a realização do estudo, aliadas aos testes da Roche e a um software desenvolvido pela empresa. Instalado em todas as unidades de saúde da cidade, o Tracking for Life foi essencial para organizar o novo fluxo de amostras e resultados, capacitar os profissionais de saúde para o uso dos novos algoritmos, garantir que os exames fossem feitos nos intervalos adequados e permitir o registro online das pacientes, evitando a dependência dos dados em papel, além de gerar estatísticas e relatórios. Para se ter uma ideia, a máquina analisa o teste e a própria ferramenta comunica o resultado ao sistema de informática da rede de saúde da Prefeitura, economizando recursos financeiros antes alocados para isso.
Outra decisão da Prefeitura, amparada pela assessoria dos pesquisadores da Unicamp, foi modificar a estratégia de imunização contra o HPV, antecipando a vacinação dos meninos para a partir dos nove anos, como já ocorria com as meninas. Também foram tomadas medidas para que a cobertura vacinal atingisse o mínimo necessário para conter a transmissão do vírus (80%), diferentemente do que ocorre no restante do Brasil, principalmente pelo estigma associado ao início da vida sexual. A principal delas foi voltar a oferecer a vacinação nas escolas a partir de 2018. “Nosso objetivo foi inaugurar uma política pública completa e consistente para erradicar o câncer de colo de útero, uma doença 100% evitável. Tenho certeza de que esses dados serão úteis para outros gestores de saúde interessados em salvar vidas e em utilizar de maneira mais adequada os recursos disponíveis para a saúde, com responsabilidade e coragem”, disse o Dr. Túlio José Tomas, médico ginecologista e vice-prefeito de Indaiatuba. A expectativa é de que, em 10 anos, já não ocorram mais casos da doença na cidade.
Para Carlos Martins, CEO da Roche Diagnóstica, a experiência representa uma excelente oportunidade para mostrar que políticas públicas podem ser eficientes quando bem planejadas e executadas de forma colaborativa, inclusive com a iniciativa privada, o que exige a digitalização da saúde e uso inteligente de dados. “Como empresa de biotecnologia 100% focada em inovação, desenvolver soluções diagnósticas só faz sentido se for para transformar a vidas das pessoas. Com base em nossa expertise em medicina personalizada e no nosso propósito de fazer agora o que as pessoas precisarão amanhã, procuramos colaborar em programas como esse, que contribuem para a sustentabilidade dos sistemas de saúde”, destaca.
Notícia retirada do site do Jornal da Unicamp