Pesquisadores identificaram bismuto circulando no sangue e depositado no cérebro, no fígado e nos rins
A orientadora da pesquisa, professora Marina Angélica Marciano, e o autor da tese, Lauter Pelepenko: concentração de bismuto nos rins é a mais preocupante / Foto Jornal da Unicamp
Um estudo da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) da Unicamp identificou que alguns materiais utilizados como reparadores endodônticos, aplicados em procedimentos como reparos de perfurações e cirurgias endodônticas, podem liberar bismuto no organismo. O bismuto também é amplamente utilizado na produção de cosméticos e de medicamentos para acidez gástrica e problemas do trato intestinal.
A pesquisa integra o doutorado realizado por Lauter Pelepenko, sob orientação da professora Marina Angélica Marciano. As análises mostraram indícios de que o bismuto presente nos reparadores circula pela corrente sanguínea e se acumula no cérebro, no fígado e, com maior intensidade, nos rins. Além de proporcionar novos conhecimentos sobre os materiais odontológicos, a descoberta revela-se importante para a medicina, já que os efeitos a longo prazo desse acúmulo são ainda desconhecidos, sobretudo em pacientes que já apresentam comprometimento das funções renais.
“Com o passar do tempo, somos expostos a diferentes agentes químicos e o número de néfrons [estruturas filtrantes] dos nossos rins pode diminuir gradativamente. Se uma pessoa tiver algum material que cause danos aos néfrons, a tendência é isso desencadear um processo de fibrose, provocando uma doença renal crônica”, explica o pesquisador, sublinhando a necessidade de se investigar o bismuto quanto a esse risco.
RADIOPACIFICADORES
Os materiais utilizados como reparadores nos procedimentos odontológicos têm funções que vão além de apenas preencher as perfurações acidentais ou patológicas. No caso dos reparadores endodônticos, sua composição é formulada para estimular o reparo de tecidos, como ossos e a polpa dental. Por isso, seu uso restringe-se às reparações internas dos dentes. Ao longo de um tratamento, e mesmo após esse processo, os dentistas precisam ser capazes de identificar, em exames como radiografias e tomografias, a presença desses materiais reparadores e diferenciá-los do próprio organismo do paciente. Isso para que saibam quando e onde houve um procedimento anterior e para que possam acompanhar a regeneração dos tecidos.
O que torna possível a visualização dessas peças em exames de imagem são os chamados elementos radiopacificadores, dentre os quais está o óxido de bismuto, investigado pela pesquisa. Outros compostos também podem ser empregados, como os óxidos de zircônio e de tântalo e o tungstato de cálcio. O emprego de um ou outro elemento depende da opção do fabricante, que deverá observar uma concentração específica para cada um deles. No caso do óxido de bismuto, a participação dele na fórmula final gira em torno dos 20%. “A função radiopacificadora é importante porque precisamos verificar se o material reparador está presente no local de aplicação e se ela foi adequada. Além disso, se houver a necessidade de algum tratamento futuro, o profissional precisa entender o que foi realizado anteriormente”, detalha Marciano.
Estudos apontando a relação entre esses reparadores e o escurecimento dos dentes são realizados há bastante tempo, mas se pensava que esse fenômeno era um efeito da concentração de ferro nos materiais. Isso fez com que os fabricantes buscassem formulações mais brancas, com menor quantidade de ferro. No entanto, à época de seu doutoramento, a docente apontou haver uma relação entre o bismuto radiopacificador e esse escurecimento dos dentes. “Como associamos o escurecimento dental a um efeito que não deveria ocorrer, passamos a analisar outros aspectos desse elemento, por se tratar de um metal. Qual seria, por exemplo, a consequência de deixá-lo em contato com o tecido conjuntivo?”, questiona.
A iniciativa de realizar um estudo sistêmico contou com a colaboração de pesquisadores da Universidade de Birmingham (Reino Unido) e com o apoio da Royal Society (academia de ciências daquele país). A partir de testes em ratos, os cientistas conseguiram identificar a degradação do metal e sua migração para outras partes do corpo. No caso, a pesquisa tomou como base o cimento reparador ProRoot MTA, o mais difundido nos Estados Unidos e na Europa e que contém óxido de bismuto – no Brasil, o produto não está disponível no mercado.
Além de verificarem o acúmulo local, na dentina dos dentes reparados, os cientistas identificaram depósitos do metal no cérebro, no fígado e nos rins das cobaias, além da presença do bismuto no sangue. “O acúmulo local e nos rins foi muito parecido, mas houve uma variação maior na dentina e uma constância no acúmulo renal”, aponta Pelepenko. Para os pesquisadores, a concentração detectada nos rins revela-se a mais preocupante. “Verificamos que o acúmulo nos rins foi duzentas vezes maior que no fígado, por exemplo.”
REPENSAR A INDÚSTRIA
O próximo passo da pesquisa será realizar o mesmo tipo de análise com outros radiopacificadores – óxidos de zircônio e de tântalo e tungstato de cálcio –, esses, inclusive, presentes em materiais utilizados no Brasil. Para isso, o projeto foi contemplado por um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e terá um financiamento de cinco anos.
As iniciativas também são positivas para o setor ao se caracterizarem como estudos independentes do mercado, evitando conflitos de interesse. Segundo os pesquisadores, muitos dos problemas identificados aparecem depois que os produtos se popularizam nos consultórios. “Os materiais são lançados, mas as pesquisas não avançam com a mesma velocidade. Com isso, os dentistas clínicos ficam à mercê da indústria”, comenta Pelepenko.
No caso do acúmulo de bismuto, análises sobre seus efeitos no organismo podem fazer com que os fabricantes repensem seus produtos. “Talvez nossa pesquisa seja um impulso para que a indústria altere a composição deles”, projeta Marciano.
Noticia retirada do site do Jornal da Unicamp