Pesquisa da USP em Piracicaba mostrou que mudanças simples na alimentação já poderiam contribuir para mitigação das mudanças climáticas
Se o consumo de carne vermelha no Brasil fosse substituído por uma alimentação diversa, composta de proteínas animal e vegetal, 809 milhões de hectares (Mha) poderiam ser poupados, 1 bilhão de toneladas de carbono equivalente deixaria de ser emitido e 720 trilhões de litros de água poderiam ser economizados. Esses são alguns dos resultados do mestrado de Ana Chamma, realizado na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP.
Sob orientação de Gerd Sparovek, professor da Esalq e coordenador do Geolab, Ana, que é engenheira sanitarista e ambiental, desenvolveu seu trabalho com o objetivo de apresentar uma nova abordagem para garantir a segurança alimentar da população brasileira e, ao mesmo tempo, a sustentabilidade do País.
Outro dado interessante foi que a dieta da região Centro-Oeste, baseada em carne bovina, causa os maiores impactos, tanto no uso da terra como no uso da água. Além disso, emite mais gases de efeito estufa no ambiente.
Já a baseada em peixes e frutos do mar, consumida em regiões nordestinas, é a que gera os menores danos.
O consumo alimentar tende a crescer nas próximas décadas, especialmente os de origem animal, ao mesmo tempo em que as áreas disponíveis ficarão cada vez mais escassas. Ana disse ao Jornal da USP que as soluções existentes para enfrentar esse problema geralmente estão focadas na expansão de novas áreas para produção ou no aumento do rendimento de terras agricultáveis, sem considerar a real demanda por alimentos. “Quando se pensa em mudanças climáticas, geralmente se olha para o transporte, para a energia, mas a alimentação também é um ponto que merece a nossa atenção.”
“A inversão de lógica veio da Ana. Ela entendeu que, com a inversão, os resultados seriam mais facilmente comunicados e entendidos por não especialistas no assunto. E deu certo, foi uma grande ideia”, comemora Sparovek.
Pensando nisso, a pesquisadora propôs uma nova metodologia, denominada “da mesa ao campo”. Ao invés de se pensar na expansão de ofertas de alimentos, Ana focou em reduzir o impacto ambiental por meio da demanda alimentar.
Na primeira parte, testou-se a possibilidade de expandir as áreas para a produção agrícola a partir de uma dieta urbana brasileira, definida pelos dados contidos na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2008/2009.
O uso da terra, as pegadas de carbono (medida que calcula a emissão de carbono equivalente na atmosfera por uma pessoa, atividade, evento, empresa, organização ou governo) e hídrica (indicador do volume de água doce gasto na produção de bens e serviços) foram analisados em oito cenários, que consideram diferentes tipos de níveis de produtividade e de perda de alimento.
Para o cenário que representa o sistema atual, estimou-se que 292 Mha devem ser utilizados no Brasil somente para atender às necessidades da população. Dados do MapBiomas mostram que, atualmente, a agropecuária ocupa cerca de 30% do território nacional (algo em torno de 225 Mha), sendo 167 Mha compostos de áreas de pastagem, 64 Mha de áreas agrícolas e 24 Mha de áreas de uso não definido (uma espécie de mosaico de pastagem e agricultura).
Se considerarmos a projeção de crescimento do número de habitantes para o ano de 2050, e caso nada se altere, o uso requerido pela dieta urbana seria de 321 Mha.
Já em situações em que as medidas de redução de perda de alimentos e ganho de produtividade foram adotadas, 53 Mt de carbono equivalente e 43 trilhões de litros de água poderiam ser preservados no Brasil anualmente.
Em uma outra etapa, a engenheira investigou de que forma as diferentes dietas brasileiras provocam danos ao planeta e se uma mudança de hábitos alimentares trazem algum efeito positivo.
“Acreditamos que mudanças simples, como consumir diferentes tipos de proteínas em uma semana, poderiam minimizar esses danos”, afirma Ana. “Integrar medidas de intensificação na produtividade agropecuária e redução na perda de alimentos, aliados à modificação de hábitos alimentares, é uma alternativa para mitigação de mudanças climáticas”.
DESAFIOS
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) prevê que 9 bilhões de pessoas habitem a Terra no ano de 2050 , ou seja, teremos ao menos 1 bilhão de pessoas a mais no planeta necessitando de alimentação daqui a 30 anos.
Garantir alimentos suficientes para essas pessoas – de forma qualitativa e quantitativa – e que eles sejam oriundos de sistemas sustentáveis é um dos grandes desafios do século 21. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – um apelo da Organização das Nações Unidas à ação para acabar com a pobreza, proteger o planeta e assegurar que todas as pessoas tenham paz e prosperidade – por exemplo, são compostos de 17 metas. Uma delas é a promoção do Fome Zero no mundo.
Dados apontam que, no Brasil, de 1985 a 2018, as áreas destinadas à agricultura aumentaram 2,5%, e as pastagens cresceram 37%. Já as áreas de vegetação nativa caíram 13%.
Foi pensando em todo esse cenário – e também em apresentar uma solução sustentável para o planeta -, que Ana desenhou o seu estudo. O primeiro capítulo teve como objetivo compreender a real necessidade do uso dos recursos para a produção de alimentos a partir da demanda alimentar da população.
Figura 1. Etapas metodológicas para a quantificação de variáveis ambientais seguindo a abordagem “da mesa ao campo” – Foto: Ana Letícia Sbitkowski Chamma
A dieta adotada pela pesquisadora foi a urbana – por representar a região onde mora a maior parte da população brasileira – e era composta de cinco refeições diárias (café da manhã, almoço, lanche da tarde, janta e ceia) baseadas nas quantidades de alimentos registrados pela POF.
Foto: Ana Letícia Sbitkowski Chamma
Em seguida, a pesquisadora fez a correspondência entre esses produtos e os dados de produtividade. Na etapa seguinte, integrou essas informações com as de com variáveis ambientais, disponíveis em outra pesquisa, feita por Josefa Garzillo na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.
Foram criados oito cenários, que combinaram produtividades atuais e futuras e níveis de perdas de alimentos em todo o sistema agroalimentar.
O primeiro deles levou em consideração a produtividade para os anos de 2017/2018 sem nenhuma perda no sistema. “É um cenário fictício, mas importante para compreender o efeito das perdas de alimentos na geração dos impactos ambientais abordados”, explica Ana.
Já os subsequentes foram simulados utilizando-se a produtividade dos anos 2017/2018 e as perdas em diferentes níveis (ambiente doméstico, na produção agrícola, na colheita, armazenamento, processamento e empacotamento, varejo e distribuição).
Segundo Sparovek, o desafio, do ponto de vista metodológico, foi maior do que normalmente se vê em dissertações de mestrado. “A combinação das bases de dados que usamos não é fácil de ser feita, exige muito conhecimento sobre as bases e de operações em banco de dados. Ana conseguiu fazer isto por ter se dedicado à iniciação científica desde a graduação e ter acompanhado outros trabalhos do nosso laboratório”, relata o orientador.
Para este sistema, estimou-se que 292 Mha devam ser utilizados no Brasil somente para o atendimento das necessidades da população brasileira. Levando em conta a projeção de crescimento populacional para o ano de 2050, o uso requerido pela dieta urbana seria de 321 Mha, caso nada se altere.
Por meio da redução de perdas e ganho de produtividade, 53 Mt de carbono equivalente poderiam ser reduzidas e 43 trilhões de litros de água preservados. Para os cenários otimizados, caso houvesse a intensificação da pecuária e/ou redução de perdas de alimentos, a expansão de áreas não seria necessária para atender às demandas futuras (2050).
“A situação perfeita viria do aumento de produtividade aliado à diminuição das perdas no sistema”, explica a pesquisadora.
DIETAS POR REGIÃO E CAMPANHAS
No meio do caminho, a engenheira identificou a quantidade de terra necessária para gerar produtos de origem animal e vegetal. Para a produção animal, seriam necessários cerca de 195 Mha e para a vegetal, 48 Mha. “É uma diferença muito grande”, diz Ana. “Nesta etapa, conseguimos pistas sobre qual dieta seria mais sustentável.”
O segundo capítulo teve como objetivo identificar a magnitude dos impactos gerados pelo consumo de alimentos, tais como o uso da terra, a emissão de gases de efeito estufa e os recursos hídricos. Além disso, buscou-se compreender se a mudança de hábitos alimentares poderia ter alguma relevância no controle das mudanças climáticas.
Para este capítulo, a metodologia adotada foi a mesma. O banco de dados foi ampliado e houve a elaboração de 17 dietas, divididas em quatro grandes grupos: regionais, situação domiciliar, classe de renda e modelos. “Todos os cardápios continham o mesmo consumo calórico, mas com a introdução de uma proteína diferente em cada um deles”, explica.
Foto: Ana Letícia Sbitkowski Chamma
Quatro cenários foram simulados e o efeito de duas campanhas que incentivam a mudança de hábitos alimentares foi analisado.
O Segunda sem carne, realizado em parceria com a Sociedade Vegetariana Brasileira (SBV), busca informar e conscientizar a população sobre os impactos do uso de produtos de origem animal na sociedade, na saúde, nos animais e no planeta, além de incentivar a substituição de carnes por vegetais ao menos uma vez na semana.
Já a campanha Less is More – Reducing Meat and Dairy for a healthier life and planet, lançada pelo Greenpeace, quer reduzir em 50% o consumo de todos os tipos de carne e derivados em todo o mundo até 2050.
MENOS CARNE VERMELHA, MAIS SUSTENTABILIDADE
As análises das dietas regionais mostraram que o cardápio da região Centro-Oeste do País causa os maiores impactos, tanto no uso da terra quanto na emissão de GEE e no uso da água, devido ao maior consumo de proteína bovina no cardápio. O consumo exige uma área 1,4 vezes maior do que as dietas no Norte, Sul e Sudeste e 2,5 vezes maior do que a da região Nordeste, que apresenta os menores impactos devido ao consumo de peixe.
Os impactos gerados pelo consumo alimentar de diferentes grupos de classe de renda e situação domiciliar, bem como das regiões Norte, Sul e Sudeste, não apresentaram variação significativa.
Tomando como referência a dieta da região Centro-Oeste, se o melhor cenário fosse adotado, 54 m2 diários per capita poderiam ser reduzidos para 29,1, ou seja, 1,8 vezes menos. Como os impactos nas pegadas hídricas e de carbono dependem do nível de perda de alimentos no sistema, no cenário em que ocorre a redução de perdas, 0,3 mil litros de água poderiam ser poupados e 0,5 kg de carbono equivalente por dia, por cada indivíduo, deixaria de ser emitido.
Dietas alternativas, principalmente as que consomem quantidades pequenas de carnes vermelhas, poderiam, se amplamente adotadas, reduzir a emissão de GEE na agricultura, reduzir a expansão de terra e gerar pegadas hídricas e de carbono muito menores.
O grande consumo de carne bovina na dieta impacta 18 vezes mais o uso da terra do que uma à base de plantas. “Me lembro que eu fiz um paralelo entre os extremos: se toda a população só comesse carne vermelha, seriam necessários quase 800 milhões de hectares por ano para dar conta dessa demanda; para a dieta vegana, 50 milhões de hectares seriam suficientes”, conta Ana.
A pesquisadora ressalta, ainda, que não precisamos ser tão radicais. “Não queríamos dar soluções totalmente fora da realidade. Se, durante a semana, consumíssemos proteínas animais diferentes em cada dia, dois dias de cardápio vegetariano e um dia de vegano, esse mix traria um resultado muito legal”, diz Ana. “Além disso, ter programas de conscientização em escolas e outras instituições, por exemplo, ajudaria a melhorar os resultados.”
Sparovek disse ao Jornal da USP que a consciência de que as escolhas das dietas diferem muito em relação aos impactos ambientais é um começo de conversa muito mais de fazer do que com temas mais abstratos e duros, como emissões de gases de efeito estufa ou biodiversidade. “Esta consciência pode ajudar as pessoas a entenderem as conexões das suas escolhas, não só em relação às dietas, mas de outras dimensões do seu modo de vida, com as questões ambientais.”
“Medidas que diminuam a perda de alimentos também devem estar no radar dos formadores de políticas públicas. No mundo, 1,3 bilhão de toneladas vão para o lixo anualmente. Muita gente não passaria fome”, conclui.
Mais informações: e-mail anachamma@usp.br, com Ana Letícia Sbitkowski Chamma.
Autor: Fabiana Mariz
Arte: Guilherme Castro/Jornal da USP
Noticia retirada do site do Jornal da USP